Ensurdecedor o silêncio das florestas, o silêncio onde mil sons começam quando o homem se cala e move-se com suavidade e cuidado sobre a pele da Grande Mãe. Pé ante pé, evitando fazer qualquer ruído, tateando o solo com os dedos, para que o menor graveto não se parta ou uma folha seca estale.
O homem integrado à natureza, um ligado ao outro como uma só coisa, seu suor misturado ao cheiro das folhas e peles que usara no ritual de busca da caça. O ancião evocara os ancestrais do clã para a caçada, bravos caçadores se materializavam frente aos homens do clã, portando suas armas e mostrando numa dança como conquistaram os seus animais de poder. Lutas se formam na névoa de resinas que queimam no braseiro, junto a folhas colhidas pela anciã, que conhecia os segredos da Mãe.
Embriagados e tomados pelos antepassados, os homens repetiam em gestos rítmicos as grandes caçadas feitas no passado, como quando o fundador do clã saiu com seus caçadores para criar um novo agrupamento depois de andar dias a procura de um abrigo. Faminto e cansado encontrou a caverna mãe, onde nasceram todos os ancestrais da tribo. Ele a conquistou lutando com um leão das cavernas com sua lança e faca.
Nesta luta o Grande Caçador ganhou a marca das 4 garras do antigo proprietário da caverna, no rosto, marca que até hoje os caçadores repetiam passando os quatro dedos, molhados na tinta cor de sangue que as mulheres preparavam, riscando o rosto na transversal vindo da esquerda para a direita. Repetiam estes eventos enquanto o corpo era impregnado com os cheiros das resinas e das folhas.
Depois o ancião vestia o couro do animal de grandes chifres e chamava as manadas e viajava através dos céus para ver o caminho que esta manada iria percorrer e a que distancia estavam, para então decidir qual o melhor ponto para interceptar os animais. Enquanto os caçadores viajavam para os feitos que fariam nesta surtida, com estes sonhos eles podiam antecipar os perigos, e na hora que ocorressem poderiam evitar o ataque dos animais.
Ele estava preocupado. Havia sonhado que um macho galhudo o pegaria no momento que se distraísse ao enterrar sua lança numa fêmea prestes a parir, pois queria a pele macias do feto. No próximo encontro da primavera estava querendo se mudar para o clã do grande touro. Havia reparado em uns olhos verdes que sempre o seguiam nas reuniões de clãs enquanto ele disputava os jogos com os rapazes. Mas agora não estava mais ansioso pela primavera, para as brincadeiras masculinas. Este ano fora consagrado caçador, agora podia ser o dono da caça que ele abatesse, agora participaria da festa das fogueiras e, segundo seus primos mais velhos, poderia penetrar nos mistérios da criação do universo junto às fogueiras. Era muito mais que uma iniciação mística da união do céu e da terra. Era muito além disso. Era penetrar no universo e sentir o corpo macio de uma mulher. Enquanto descreviam as delícias, ele se lembrava dos olhos verdes, e dos sorrisos que a menina lhe enviava. Ele queria a pele dos fetos prestes a nascer para fazer uma pelica leve e macia para ofertar a ela nas fogueiras.
Mas de que adiantaria matar a fêmea, se poderia ser morto pelo macho e, seu sangue a escorrer pela terra junto com o da fêmea, poderia fazer com que ele nascesse gamo na próxima vida.
Nem durante a sua iniciação ele ficara tão receoso. Fora levado vendado para bem longe e solto com apenas um pouco de comida, poucas lanças, uma faca de pedra e apetrechos de fazer fogo.
Ele deveria voltar pra casa com uma caça, que ele sacrificaria aos deuses cortando a garganta do animal, para que o sangue empapasse a terra e voltasse para a grande mãe. Depois ofereceria o coração ao Deus da caça, montaria acampamento, conservaria a carne com fumaça e ficaria ali até que o Grande Caçador lhe indicasse o seu animal de poder e seu nome mágico.
Agora ele era um caçador dos leões da caverna do riacho limpo, era um homem, e por mais que soubesse que não existia morte, ele gostava de estar vivo.
Agora ele iria aproveitar as regalias de ser um caçador, participaria dos mistérios, freqüentaria os rituais masculinos, faria jornadas em busca de caças distantes. Seus feitos seriam contados nos encontros da primaveras e depois seriam levadas para as tribos distantes e sua alma nunca se perderia, pois ele estaria sempre nas conversas noturnas das cavernas e seu nome seria falado nos rituais dos ancestrais. Mas se morresse por seu orgulho de caçar a presa que buscava, e se descuidasse das suas defesas, seria logo esquecido e sua alma se perderia do clã e não mais renasceria na própria família.
Já visualizava o rebanho se aproximando, seu corpo colado à arvore parecia ser parte dela, todos os seus sentidos estavam voltados para a caçada, seus músculos retesados e prontos para o ataque enquanto na sua mente os gestos e movimentos dos seus antepassados tantas vezes dançados nos rituais estavam incorporados dentro dele, como se uma cadeia interminável de vidas o levassem ao primeiro caçador, ao Grande caçador, o Deus que diferenciou os homens dos animais, o Deus que ensinou que os homens podiam se alimentar melhor caçando e que salvou a espécie da extinção. Com ele aprenderam a criar suas armas, o código silencioso usado pelos grupos que substituíam os gritos e as palavras, e que permitiam que cercassem e se aproximassem mais da caça sem assustá-la.
Ele agora era o Deus, seus pés plantados no chão o ligavam à terra, seu corpo era como uma mola comprimida, pronta para distender-se e voar em direção à presa e arremessar certeiramente sua lança com a ponta afiada no fogo. O deus caçador estava nele, não importava mais a vida ou a morte, agora a sua mente só pensava em escolher o alvo, pois o clã precisava da carne para continuar forte, alimentando suas mulheres e crianças, para que novos caçadores crescessem fortes e pudessem manter o nome da caverna mãe com honra.
Paro aqui para dizer que ainda temos no masculino este espírito caçador, ainda temos em nós o deus da caça e no fundo de nossas mentes ainda existem gravadas as danças e os movimentos da caçada. Ainda podemos ser unos com a natureza, e por mais civilizados e com todos os controles sociais que mascaram a nossa identidade selvagem, nem todo o controle imposto pelos impérios da antiguidade, nem os 2.000 anos de cristianismo apagaram em nós o espírito pagão, a divindade que existe no masculino.